Quando a religião utilitarista supera os limites da responsabilidade social
Além da pandemia do novo Coronavírus existem outras “dores de cabeça” que estamos tendo de lidar todos os dias. Na manhã desta quinta-feira (26), o governo federal assinou e publicou um decreto que lista as atividades essenciais durante o tempo de isolamento físico da sociedade. Nesse decreto, as atividades essenciais são: geração, transmissão e distribuição elétrica; serviços de pagamento, de crédito e de saque, além do funcionamento das Casas Lotéricas; produção de petróleo e distribuição de combustíveis; atividades médico-periciais; fiscalização do trabalho; atividades de pesquisa científica, relacionadas ao COVID-19; atividades de representação judicial e extrajudicial e por fim, atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde. É exatamente neste ponto que vamos detalhar nossa observação.
É indiscutível que o Ministério da Saúde orienta a não aglomeração de pessoas em locais públicos e privados, mesmo permitindo, desde o dia 13 de março, que os templos poderiam ficar abertos para quem quisesse praticar seu rito e ser orientado espiritualmente. Nisso, não vejo problema algum dos líderes religiosos exercerem o papel no cuidado das pessoas. A questão que gera o debate público é que, quando se decreta que as atividades religiosas são serviços essenciais mediante ao contexto que estamos vivendo, de fato, abre-se um pretexto para a realização de celebrações presencias. Qual a essencialidade em realizar um culto, ou uma missa, aglomerando pessoas e potencializando a transmissão viral em determinado ambiente? Até porque a maioria das igrejas das mais variadas religiões nunca deixou de realizar sua respectiva atividade, a diferença é que, neste momento, a presença física não é indicada. Um exemplo de que as igrejas não pararam suas atividades trata-se dos cultos e missas que estão sendo produzidos nas mídias sociais. Aliás, eu nunca vi tantos líderes religiosos fazerem tanta atividade religiosa quanto agora. Se seguirmos um perfil de um pastor, por exemplo, todos os dias esse mesmo pastor estará em nossa casa comunicando a fé. Decretar que a atividade religiosa é essencial no momento em que a própria atividade religiosa nunca foi estagnada é, de fato, atender aos interesses de um grupo, de uma tribo, de um segmento.
Sabemos que o gene da igreja é a vivência em comunidade, mas quem disse que a comunidade é exclusiva a quatro paredes de um templo? “Disse-lhe a mulher: Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar. Disse-lhes Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. […] Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem” (João 4. 20–23). Jesus fala de uma fé desterritorializada, não restrita a um grupo ou a um lugar.
Se as atividades religiosas são serviços essenciais, por que as atividades escolares não seriam? Por que as atividades de mercado também não seriam? Detalhe: essas minhas perguntas são apenas para efeito retórico, porque incentivo que nossa a melhor estratégia, neste momento, é ficarmos em casa e cuidarmos dos nossos.